Uma resposta a François Turrettini sobre a vontade divina antecedente e consequente

Joel Pereira
10 min readApr 20, 2021

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Pintura de Francisco Zumel, por Francisco de Zurbarán

Turrettini, em seu Institutio Theologiae Elencticae (Compêndio de Teologia Apologética), levanta algumas objeções quanto à distinção tomista (e escolástica, de um modo geral) entre vontade divina antecedente e vontade divina consequente (Tópico III, Pergunta 16, Seção VI). Nosso intento com este breve ensaio é saber se suas objeções são cabíveis ou se sustentam frente ao ensino de Santo Tomás e da sua escola. Para tal propósito, serão citadas as objeções de Turrettini e, em seguida, feitos os devidos comentários.

Essa distinção é, em vários aspectos, injuriosa a Deus: (1) porque lhe atribui vontades contrárias (ou seja, Deus quer a salvação de todos e quer a salvação somente de alguns)

Pontue-se à partida que é crença cristã comum que em Deus há a perfeição da vontade, e não poderia ser diferente: toda perfeição pura ou que não implica imperfeição em sua razão formal dever pertencer Àquele que tem todas as perfeições da ordem do ser, e as têm segundo o ângulo da atualidade pura (Suma contra os gentios, cap. LXXIII). Consequentemente, as possui sem qualquer composição em sua essência; logo, a vontade divina deve ser una. Mas uma vez que há composição por parte das coisas queridas por Deus, e por outro lado o nosso intelecto não o conhece senão por um complexo de atos e pelas coisas criadas, segue-se que cabe distinção racional (com fundamento na coisa) na vontade divina unitária. Pois bem, dentre as distinções racionais na vontade divina, os escolásticos afirmam a distinção entre vontade antecedente e consequente: a primeira é aquela com a qual Deus quer tudo que convém na sua bondade de maneira absoluta, e a segunda é aquela com a qual Deus quer todas as coisas reais, até mesmo aquelas que não convêm na sua bondade.

Logo, a primeira objeção de Turrettini sofre pela falta de referência real, pois não há realmente vontades contraditórias em Deus, visto que a vontade é uma perfeição pura e, portanto, se identifica com a essência indivisa e simpliciter simples de Deus. A composição de antecedente e consequente não se funda pelo lado de Deus, mas pelo lado do cognoscente humano, o qual, por composição que convém radicalmente na sua essência e operações, não pode senão conhecer por atos complexos; neste caso, discernindo terminações distintas queridas por Deus e aplicando, por ficção de sua mente, separação naquilo que é essencialmente uno. Com efeito, diz Santo Tomás: “Essa distinção não é tomada da parte da própria vontade divina, em que não existe antes nem depois, mas da parte das coisas que Ele quer”[1]. E confirma Zumel, o luzeiro dos mercedários, dizendo que a distinção em antecedente e consequente não impõe duas vontades distintas em Deus, pois sua vontade é ato único.[2] Logo, resta completamente inócua a seguinte argumentação do nosso eminente reformado:

Segundo, essa distinção não pode ocorrer em Deus sem atribuir-lhe não apenas estultícia e impotência (ao fazê-lo pretender seriamente e desejar com natural afeição aquilo que não é realizado e não pode ser realizado por intermédio do homem, visto que ele mesmo não o quer), mas também mutabilidade, porque não pode haver lugar para a vontade conseqüente até que a antecedente seja primeiramente rescindida. Pois, como poderia Deus ao mesmo tempo, pelo mesmo ato de vontade, querer salvar todos os homens e condenar a maioria deles?

E se é absurdo colocar composição real na essência divina, mediante uma tal composição de “duas vontades”, mais absurdo ainda seria se tais vontades fossem contraditórias. Mas Turrenttini insiste que se elas existissem, então se quitariam mutuamente, visto que o ato de uma seria como a negação do ato da outra. — O argumento de Turrenttini não poderia ser mais atrapalhado. Em primeiro lugar, basta observar com Santo Tomás (I, q. 19, art. 6) que as terminações das “duas vontades” são a mesma realidade, porém considerada por ângulos diversos, não por ângulos contraditórios. Ora, algo pode ser considerado absolutamente, sem atenção ao seu estado atual completo ou já coberto com todos os acidentes e circunstâncias, ou ser considerado na sua condição real e total, tal como aparece ordenada à existência, com ou sem notas opositivas ao bem. Assim sendo, podemos, sem contradição, dizer que Deus quer a saúde para João enquanto o considera homem, e ao mesmo tempo dizer que Deus quer a doença que matará João, enquanto o considera homem imoral e merecedor do castigo. Perceba-se que não se tratam de términos contraditórios, mas meramente distintos.

Obviamente que pelo ângulo da vontade divina antecedente, no vetor sobrenatural, Deus não considera pecado algum da criatura, nem mesmo qualquer de seus impedimentos postos ou não postos às graças suficientes, para fins de uma ordenação geral à Glória, justamente porque se trata de uma consideração absoluta de todos os homens sob a condição de estarem em estado de graça. Ora, tal fim geral querido por Deus é algo que convém com a sua bondade, pois “[…] o fim último gratuito de todas as criaturas em ordem sobrenatural é a contemplação de Deus mesmo, na qual encontra-se a beatitude eterna do homem”[3], logo não repugna a vontade antecedente. Já pelo ângulo da vontade divina consequente, Deus considera a mesma criatura sob um ângulo distinto, a saber, tal como ela se acha completamente na realidade, revestida com todos os seus acidentes e circunstâncias, até mesmo com aquilo que faz oposição ao bem, isto é, pecando ou pondo resistências aos auxílios sobrenaturais conferidos. Com efeito, Deus pode querer, por vontade consequente, a condenação da criatura que é, por outro aspecto, termo da vontade divina antecedente de salvação geral, e não há contradição naquilo que é compossível. Mas, vejamos ainda outra reclamação de Turretini:

Terceiro, a vontade antecedente não é tanto uma vontade quanto uma veleidade ou volição fraca, um desejo vazio e fútil, incapaz de realização, a qual não pode ser aplicada a Deus (o sapientíssimo e poderosíssimo). Pois, como poderia ele ser chamado o perfeitíssimo e felicíssimo se não pudesse concretizar o desígnio e objetivo realmente pretendido, em virtude da intervenção e obstáculo da criatura também se determinando independentemente?

Dois erros palmares logo de cara. O primeiro é que a vontade divina antecedente não é “vazia” ou “fútil”, justamente porque com ela Deus quer realmente algo, a saber, tudo aquilo que absolutamente convém na sua bondade. Nem mesmo o rígido Báñez teve o desplante de negar o valor da vontade antecedente, a qual chamava “vontade metafórica”, antes negou que ela fosse produtora de efeitos reais, pondo-a em rígida e essencial ordem à vontade consequente — o que também é um erro, conquanto menor. O segundo erro é supor que a vontade antecedente implica “impotência” por parte de Deus. Dizê-lo é simplesmente não compreender o caráter essencialmente condicionado desta vontade, e supor, sem aportar qualquer razão, que ou Deus deve querer tudo quando quer de modo infalível ou não pode querer. Mas o que queremos dizer por “caráter condicionado”? Muito simples: significa que tudo aquilo que Deus quer que aconteça, acontece de forma infrustrável, posto que é impossível a causa primeira ser determinada ou vencida pela causa segunda, mas acontece como Deus quer que aconteça. E como Deus pode querer condicionalmente que as coisas aconteçam? Também muito simples: querendo que se realize a ação da criatura se ela não puser impedimentos ao bem, isto é, se ela seguir no bem do qual Deus é causa primeira, e não querendo que se realize a ação da criatura se ela puser impedimentos, isto é, se ela se desviar do bem e iniciar, como causa primeira do mal, a linha do pecado; com efeito, sem querer infrustravelmente que a criatura ponha ou não ponha qualquer obstáculo. Ou seja, quer primeiro algo sob certa condição, a qual, acrescente-se, será efetivamente satisfeita ou não se Ele mesmo quiser ou permitir infalivelmente pela sua vontade consequente. Em suma, por assim dizer, Deus vai aumentando o grau da atuação (suave e forte) da sua vontade sobre a vontade da criatura.

Observe-se que é ponto de comum acordo que o mal moral começa pela criatura; mas o que nem todos percebem é que isso só faz sentido se afirmarmos o caráter condicionado e real da vontade divina antecedente. Só assim podemos dizer, sem subterfúgios, que Deus quer permitir que a criatura disponha impedimentos ou faça o mal. A vontade divina jamais falha nem pode falhar, mas não há óbice para que Deus queira algo infalivelmente ou com certa condição.

Quarto, Deus, nesses moldes, estaria sujeito ao homem, visto que a vontade consequente depende da determinação da vontade humana, de modo que ninguém seria eleito por Deus se primeiramente não escolhesse a Deus por sua fé e arrependimento.

Esta objeção é um pouco (mas só um pouco mesmo) melhor do que as anteriormente. Com efeito, para uma completa resposta basta apresentarmos a concórdia de Marín-Sola da providência divina antecedente e consequente. Veja-se:

Momento 1 — Vontade antecedente: Deus decreta premoções físicas gerais e falivelmente eficazes (as quais, em ordem sobrenatural, são as graças suficientes falívis). Tais premoções, porém, são infalíveis em sua incoação, mas falíveis quanto ao seu curso e êxito final.

Momento 2 — a ciência de visão dos decretos do primeiro momento. Deus vê a incoação falível do ato e vê o impedimento posto (defeito atual) ou não posto de fato ao curso e término da moção.

Momento 3 — Vontade consequente: a) Deus decreta dar premoções especiais e infalivelmente eficazes. Por tais premoções, Deus faz, infalivelmente, que não se ponham impedimentos ou que, uma vez postos, sejam quitados e, com efeito, o ato siga na linha do bem infalivelmente; b) Deus decreta não dar premoções especiais e infalivelmente eficazes, mas permite a continuação das premoções gerais.

Momento 4 — A ciência de visão dos decretos do terceiro momento. Dos decretos eficazes e infalíveis de dar ou não dar premoções infalíveis, segue-se infalivelmente a ciência divina do bem e do mal.[4]

Logo, percebe-se que é Deus mesmo que decide se decretará ou não dar premoções físicas especiais ou graças infalivelmente eficazes para quitar os impedimentos das criaturas. É Deus mesmo que decide se quer algo sob certa condição, se dará médios negativamente impedíveis pelas criaturas e se, ao fim e ao cabo, fará aparecer ou não o mal do qual não é causa. Não há aqui um Deus que “espera” ou é “determinado” pelo homem. Há um Deus infalível que conhece infalivelmente o mal do qual não é causa. O início da linha do mal pertence à causa defectível, conquanto jamais deixe de estar sob a divina providência, a qual é omniabarcante. Assim, ao dizermos que Deus inicia a linha do bem — linha na qual a criatura atua sempre subordinadamente –, estamos indicando que a impressão do ato causal na vontade criada é sempre infalível e para o bem. Mas uma vez que a linha do mal supõe a linha do bem, pois o mal é opositivo ao bem, logo a não consecução para o bem ou o desvio (formal e atual) para o mal será sempre formalmente devido à criatura como causa primeira ineficaz sob a permissão de Deus. E para lançar a tampa sobre o caixão, veja-se o que diz o Aquinate: “Deus move todas as coisas segundo a maneira de ser delas. E esta divina moção é participada em alguns com necessidade, mas na natureza racional com liberdade, visto que a potência racional tem possibilidade para coisas opostas. Por isso de tal maneira Deus move a mente humana ao bem, que ela pode resistir a esta moção.”[5]

Quinto, é repulsivo ao evangelho, que constantemente ensina que Deus quer salvar, não simplesmente todos, mas somente os eleitos e crentes em Cristo, e que os meios de salvação não são oferecidos ou conferidos a todos, mas somente a alguns. Enfim, isso subverteria a eterna eleição divina, porque seria deixada na incerteza, fundamentada não no beneplácito (eudokia) de Deus, mas na vontade humana (e nada é mais incerto e mutável do que ela). Ela se tomaria de tal natureza que não poderia responder por nenhuma execução (i.e., se tomaria vazia e ineficaz).

A última objeção de Turrettini simplesmente reafirma a crença majoritária entre os reformados de que Deus não quer salvar a todos, mas somente os eleitos. Mas o fato é que as incompreensões acerca da distinção entre vontade divina antecedente e consequente não são apenas contrárias à razão, mas também colocam os textos bíblicos em confronto direto com Turrettini. Não nos cabe neste pequeno texto apresentar os fundamentos escriturísticos e teológicos da vontade salvífica universal; cabe, porém, pontuar que a doutrina tomista, em especial aquela que é segundo a mente de Zumel, sistematiza de um modo harmonioso os diversos textos bíblicos que afirmam uma vontade divina salvífica universal (1 Tm 2:4/Jo 3:16) e o fato de que muitos não se salvam, a saber: com vontade antecedente, Deus quer real e sinceramente a salvação de todos os homens que não rejeitarem a sua graça, e para isso dispõe os meios suficientes ou adequados, mas com vontade consequente, não quer a salvação para todos os homens, porque considera alguns enquanto rejeitam a sua graça. Com efeito, Deus decide gratuitamente conceder as graças ulteriores àqueles que receberem, sem impedimentos negativos, a sua graça suficiente, e decide não quitar o impedimento posto pelos demais, os quais rejeitam a sua graça. Segue-se, por fim, a salvação e a condenação de alguns. — Ficam harmonizados na maravilhosa Graça de Deus o fato concreto de que Cristo resgatou a sua Igreja para si com o seu próprio sangue e a vontade divina de querer que todos os homens se salvem.

Notas

[1] Quae quidem distinctio non accipitur ex parte ipsius voluntatis divinae, in qua nihil est prius vel posterius; sed ex parte volitorum. (S. Th., I, q. 19, art. 6 ad 1)

[2] In Primam D. Thomae Partem Commentaria, q. XIX, disp. 6, art. 3, conclusão 1 e 2.

[3] BEZERRA, Leandro L. Opúsculo “Da Divina Providência”, pág. 64.

[4] Bezerra, Leandro L. Op. cit. Pág 58.

[5] “Ad secundum dicendum, quod Deus movet omnia secundum modum eorum. Et ideo divina motio a quibusdam participatur cum necessitate, a natura autem rationali cum libertate, propter hoc quod virtus rationalis se habet ad opposita. Et ideo sic Deus movet mentem humanam ad bonum, quod tamen potest huic motioni resistere.” Tradução de Carlos Alberto (Quodlibet I, q. IV, art. II, ad 2)

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Written by Joel Pereira

Tomista e estudante da escolástica nas horas vagas. Espaço onde publicarei artigos sobre teologia e filosofia.

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